4.09.2008

O abismo entre eternidade e eu

"Jamais esquecerei meu aflitivo contato com a eternidade.
Quando era muito pequena ainda não tinha provado chicletes [...]
Afinal, minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola, me explicou:
- Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.
- Como não acaba ?
- Não acaba nunca, e pronto.
Eu estava boba: parecia ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. [...]

- ...acabou se o docinho. E agora ?
- Agora mastigue para sempre.


Assustei-me, não saberia dizer o por quê. comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem da bala eterna me enxia de medo, como se tem diante a idéia de eternidade ou infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chiclete mastigado cair no chão.

[...]

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada com a mentira que pregara dizendo que o chiclete caíra da boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim."

- Clarice Lispector